No fim das contas, a história das “PECs da Bandidagem” no Brasil é a crônica de uma elite que nunca se sentiu confortável com a ideia de uma República para todos
O Brasil, com sua peculiar vocação para o realismo fantástico, nos presenteia com mais uma joia de sua engenharia jurídico-legislativa: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que, no vernáculo das ruas e redes, atende pela alcunha de “PEC da Bandidagem”. O nome, cunhado com a precisão impiedosa do humor popular, já entrega o enredo. Trata-se de uma tentativa de blindar parlamentares contra processos criminais, uma espécie de salvo-conduto para que o exercício do poder possa, digamos, transitar por zonas cinzentas com a tranquilidade de quem possui um mapa astral favorável no Supremo Tribunal Federal. A ironia é que, enquanto o nome popular a denuncia, sua tramitação oficial segue os ritos solenes da normalidade democrática.
Contudo, seria um erro de perspectiva histórica enxergar esta PEC como uma anomalia. Ela é, na verdade, a mais recente herdeira de uma longa e robusta linhagem de “PECs da Bandidagem” que moldam a nação desde que nos entendemos por independentes, em 1822. Nossa história é pródiga em exemplos de como a ilegalidade e o privilégio foram, reiteradamente, institucionalizados com a pompa e a circunstância da lei. Pensemos na Lei de 7 de novembro de 1831, que proibia o tráfico de escravizados. Uma lei para “inglês ver” (mesmo que ela tenha sido efetivamente aplicada, mas depois ignorada) como se consagrou, que na prática serviu para acalmar as pressões britânicas enquanto o contrabando de africanos escravizados atingia seu ápice nas décadas seguintes. Uma emenda constitucional informal que dizia “está proibido, mas se quiser, pode”.
E o que dizer da reforma eleitoral de 1881, a tal Lei Saraiva? Sob o pretexto de moralizar as eleições, ela instituiu a exigência da alfabetização para o exercício do voto. Numa sociedade onde mais de 80% da população era analfabeta, essa foi a “PEC da Exclusão”. Com uma canetada, alijou-se a imensa maioria do povo do processo político, garantindo que o poder permanecesse um clube restrito aos “homens bons” – proprietários de terras e de gente! O argumento, à época, era o da “ilustração” necessária para o voto consciente. Hoje, argumentos semelhantes sobre a complexidade da política justificam manobras que, no fundo, buscam o mesmo: proteger seus intereresses escusos e excluir o povo.
As Constituições, os golpes e as ditaduras que se seguiram representam o ápice dessa tradição. Por exemplo, a Constituição Republicana liberal de 1891 restringia o voto. Somente homens maiores de 21 anos podima votor, mas excluindo analfabetos, mendigos (quem seriam eles?), soldados, mulheres e religiosos sob voto de obediência. Isso significava que menos de 5% da população da época tinha direito ao voto.
O eleitorado era uma diminuta oligarquia. De uma população de 14,3 milhões, apenas 800 mil (5,6%) estavam aptos a votar. As mulheres representavam metade da população. Pretos e pardos, recém-libertos pela Lei Áurea (1888), eram quase todos analfabetos. Mesmo entre os brancos, poucos sabiam ler e escrever naquele Brasil predominantemente rural.
O “Estado Novo”(1930-1945) de Vargas, justificado por uma falsa ameaça comunista (o Plano Cohen, 1937), e o regime militar de 1964, que prometia varrer a corrupção e o “perigo vermelho”, foram, em essência, as mais brutais “emendas à Constituição.” Suspenderam a própria Constituição em nome de uma suposta ordem superior, que invariavelmente coincidia com os interesses de uma elite autoritária. Cada ato institucional da ditadura militar foi uma “PEC da Bandidagem” em sua forma mais pura, legalizando a tortura, a censura e o assassinato em nome da “segurança nacional”.
Assim, a “PEC da Bandidagem” de hoje não é um raio em céu azul. Ela é a manifestação contemporânea de um DNA político arraigado, que desconfia da democracia e anseia por um cercadinho onde as regras do jogo não se apliquem aos jogadores. A novidade, talvez, seja a desfaçatez. Se antes as manobras eram vestidas com o manto da segurança nacional ou da moralidade, hoje a justificativa é a autoproteção descarada contra uma suposta “perseguição” do Judiciário. É a bandidagem pedindo para legislar em causa própria, com transmissão ao vivo pela TV Câmara.
O mais irônico é que, ao tentar se blindar, o Congresso se torna mais vulnerável àquilo que diz combater. A imunidade parlamentar excessiva é um convite aberto para que o crime organizado, com seu vasto poder econômico, invista (ou continue a investir) em suas próprias bancadas. Para que comprar um deputado se se pode eleger um? A “PEC da Bandidagem” pode, assim, se tornar a porta de entrada para a “Bancada do Crime S.A.”, com direito a verba de gabinete e discurso no plenário. Será tudo isso novo na história brasileira? O que diria a bancada escravocrata do século XIX? O que diria Dom Pedro II? Que, apesar de “ilustrado”, governou a nação mais escravocrata de todos os tempos…
No fim das contas, a história das “PECs da Bandidagem” no Brasil é a crônica de uma elite que nunca se sentiu confortável com a ideia de uma República para todos. É a saga de um Estado que, em vez de combater o crime é o próprio crime com assento no parlamento. Resta-nos, cidadãos perplexos, a tarefa de vaiar o espetáculo e lembrar que, na longa temporada de caça à cidadania, a democracia é sempre a primeira a levar um tiro. E, pelo visto, a arma, mais uma vez, está na mão de quem deveria protegê-la.

“Juramento de posse, Constituição de 1891”. Aurelio de Figueiredo, 1896. Óleo sobre a tela. Fonte: Museu da República. Na pintura, os militares Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e outros membros da elite republicana. Muitos homens (brancos), barbas e bigodes. As mulheres, acima, cidadãs sem direito ao voto.
Professor e Historiador. Mestre e Doutor pela USP. Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). Apresentador do “Provocação Histórica”, programa semanal de divulgação de História, Cultura e Arte nos canais do ICL. Especialista em desmascarar narrativas históricas convenientes e incomodar quem prefere a versão falaciosa dos fatos.

