Quem tem medo de remédio controlado?

Quem tem medo de remédio controlado?

Um dos dilemas mais frequentes num consultório de psiquiatria é a resistência ao uso dos medicamentos por parte dos pacientes. É verdade que essa resistência possui diversas origens, mas acredito que duas são as razões principais: 1) a impressão (equivocada) de que todos os psicofármacos (denominamos psicofármacos a todos os medicamentos que agem no sistema nervoso central; os ditos medicamentos psiquiátricos são os psicofármacos; uma outra denominação é a de psicotrópicos) são virtualmente iguais, ou muito semelhantes e que todos causam sedação (na linguagem popular, “dopam” o sujeito que os usa); e 2) a ideia de que, ao tomar um psicotrópico, o sujeito deixa de ser ele mesmo para ser uma versão da própria pessoa modificada por uma substância química. O presente texto pretende abordar as duas percepções. Comecemos pela primeira.

Se fosse verdadeira a impressão de que todos os psicofármacos são soporíferos, seria mais do que justa a resistência observada nos pacientes em relação a tais medicamentos. É possível que essa impressão acerca dos psicotrópicos seja oriunda de uma outra falsa impressão: a de que todos os portadores de um transtorno mental são agitados e/ou agressivos. Imagino que o senso comum elabora a seguinte conclusão: se os portadores de uma doença mental são agressivos e/ou agitados, os medicamentos utilizados para estabilizá-los deverão ser todos calmantes, sedativos, hipnóticos.

Entretanto, nenhuma das características citadas acima é verdadeira: nem é verdade que todos os pacientes psiquiátricos são agitados/agressivos; nem é verdade que todos os medicamentos da Psiquiatria causam sonolência, assim como também não é verdade que os psicofármacos são um grupo homogêneo de medicamentos, no sentido de causarem os mesmos efeitos terapêuticos e os mesmos efeitos colaterais.

Vejamos o exemplo da depressão. Os pacientes que apresentam uma síndrome depressiva são, em geral, quietos (é preciso deixar claro que é possível um paciente com depressão apresentar agitação psicomotora, mas é mais frequente que esse paciente não apresente esse sintoma e sim uma diminuição da atividade psicomotora). O paciente deprimido, em geral, não tem vontade de fazer nada, nem de falar com ninguém, quer ficar apenas no seu canto, sem elaborar interações.

Prescrever, para esse paciente, um sedativo, seria um total contrassenso; tal medicamento iria manter esse paciente cada vez mais recluso, seria mais difícil para ele ter ânimo para fazer as coisas, interagir com as pessoas. Os psicofármacos denominados antidepressivos procuram auxiliar o paciente no reencontro com a motivação, com a vontade de fazer as coisas e o prazer em fazê-las. Nesse sentido, não são sedativos. A ideia por trás da elaboração de um medicamento e por quem o prescreve é ajudar as pessoas.

Vejamos ainda o exemplo de uma outra condição denominada TDAH: Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. Os portadores de TDAH se dividem em três grupos: há aqueles que apresentam apenas o déficit de atenção; há aqueles que apresentam apenas a hiperatividade (a sigla do transtorno não contém a palavra “impulsividade”, mas a hiperatividade é, com frequência, acompanhada pela impulsividade); e há aqueles que apresentam tanto o déficit de atenção, como a hiperatividade. Grosso modo, um indivíduo portador de hiperatividade se caracteriza por apresentar, de forma praticamente constante – mostrando-se quase como um “jeito de ser” da pessoa –, necessidade de atividades motoras e/ou psíquicas e essa característica traz sofrimento e/ou prejuízo em sua funcionalidade. Em outras palavras, o sujeito precisa estar se mexendo, fazendo algo, ou pensando em algo – caracterizando-se assim a hiperatividade, que pode ser motora e/ou psíquica.

Pois bem, a principal terapia farmacológica para essa condição é uma classe de medicamentos ditos psicoestimulantes. Acredito que o senso comum terá dificuldade em entender como é que um indivíduo que tem “hiperatividade” se beneficiará de um estimulante do sistema psíquico. Não cabe aqui explicar o mecanismo de ação do medicamento, mas o fato é que, com o tal psicoestimulante, o indivíduo passa a ter uma necessidade, em termos quantitativos, dita “normal” de fazer coisas e/ou de pensar. Ele melhora da hiperatividade e, desta forma, consegue se organizar melhor, completar suas tarefas e, com isso, tende a melhorar o sofrimento mental. E, mais uma vez, de forma alguma, esse medicamento tem características sedativas. Na verdade, ele pode ser útil, em associação aos antidepressivos, no
tratamento da depressão.

Verifico, na minha prática clínica, que, quando o paciente compreende a ação, o efeito esperado do medicamento que está sendo prescrito, o preconceito inicial em relação aos psicotrópicos – de que todos causam sonolência – é desconstruído. Cabe ao profissional que prescreve dedicar tempo à orientação sobre os medicamentos.

Desta forma, o paciente se sentirá mais motivado a usar o medicamento. Falemos agora sobre a outra razão para a aversão aos psicotrópicos: a de que, ao usar um psicotrópico, a pessoa está deixando de ser ela mesma.

Eu costumo dizer que, para tudo (ou quase tudo) nesta vida, podemos elaborar diversos olhares, percepções, interpretações. Esse olhar, de que fazer uso de um psicotrópico é modificar o jeito de ser de uma pessoa, é apenas uma forma de olhar para essa situação. Incomodar-se com essa percepção é apenas uma forma de perceber toda essa configuração. Mas esta não é a única maneira de ver tudo isso.

Um sujeito deprimido já é uma pessoa modificada – modificada pela depressão. Antes o indivíduo cuidava da própria higiene, relacionava-se adequadamente com as pessoas, trabalhava regularmente, tinha interesse em participar de atividades de lazer, etc. Agora, acometido pela depressão, ele se transformou numa outra versão dele mesmo. É o “eu dele deprimido”. Não mais cuida de si mesmo, não consegue mais sair de casa para trabalhar, nem tem vontade de falar com as pessoas, nem sente prazer naquelas atividades antes prazerosas. O medicamento – juntamente com as outras importantíssimas terapias não farmacológicas (psicoterapia, atividade física, etc) – tentará resgatar esse “eu perdido”.

As terapêuticas que se propõem buscarão a reabilitação do sujeito a voltar o que ele era, o que ele sempre foi. As estratégias de tratamento (e os medicamentos estão inclusos nessa lista de estratégias) buscarão facilitar a retomada da funcionalidade e a diminuição do sofrimento.

Como em tudo nessa vida e, na psiquiatria não é diferente, existem histórias de sucesso e histórias de fracasso. Diante de um paciente portador de sofrimento mental, nós, profissionais da saúde mental (psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, etc.) queremos diminuir esse sofrimento e facilitar que a funcionalidade desse sujeito seja retomada. Para isso, lançamos mão das ferramentas de que dispomos e que sabemos ser eficazes. Entretanto, como dissemos no início desse parágrafo, há histórias de sucesso e de fracasso; não há perfeição nas obras humanas. Porém, quando se trabalha com transparência, com esclarecimento das informações e com desmoronamento de preconceitos, os caminhos tendem a ser favoráveis. O movimento de encontro entre o ser humano que sofre e o profissional atencioso, responsável, competente e esclarecedor dos modos de trabalho tende a ser um encontro profícuo e gerador de belas histórias.

 

Por: Geraldo Pinheiro, médico psiquiatra

Publicado 9 de setembro de 2025 às 16:15 em https://www.novonoticias.com.br

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